“Temos que acabar com o hábito de manter um animal silvestre em gaiola para entreter o ego das pessoas”, reflete a médica dermatologista mineira e conservacionista ambiental Raquel Machado. Há 10 anos, ela concilia sua atividade de formação com ações que ajudam bichos vítimas de tráfico e de maus-tratos. Neste ano, ela lançou o Instituto Raquel Machado, focado em questões socioambientais. A iniciativa surgiu após anos de trabalho em seu sítio em Porto Feliz, São Paulo, como mantenedora autorizada do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente).
Raquel, que é radicada na capital paulista, onde possui uma clínica, também foi uma das responsáveis pelo resgate da Onça Ousado, vítima dos incêndios que se alastraram nos últimos meses no Pantanal. Agora, a médica está envolvida no maior projeto de conservação privado do país, a Fazenda Santa Sofia, localizada em Aquidauana (MS). A seguir, em entrevista à jornalista Gislandia Governo, ela conta sobre seu trabalho em prol dos animais e das causas socioambientais e também detalha os objetivos do projeto.
De médica dermatologista a defensora da natureza. Como surgiu seu interesse pelas causas ambientais?
Sempre fui apaixonada pelos animais e pela natureza. Mas, depois que eu comecei a viajar pelo Pantanal, Amazônia e, principalmente, o sul do Pará, vi de perto o desmatamento, a ação dos agrotóxicos na vida dos animais e todos os impactos negativos na fauna e flora do nosso país, e, desde então, comecei a me engajar em causas socioambientais.
Como teve início seu trabalho como mantenedora do Ibama e quais são os seus objetivos?
Comecei a cuidar de animais vítimas de tráfico há 10 anos, depois que adquiri um sítio em Porto Feliz (SP) e “herdei” um papagaio que vivia em uma gaiola há muitos anos. Sempre me incomodou muito ver um animal naquele tipo de situação, preso, sem outra escolha de vida. Eu nunca imaginei na minha vida que um dia eu teria recintos com animais em cativeiro.
Porém, conhecendo o outro lado dos animais que foram vítimas dessas barbarias, e passam a não ter condições de soltura, eu resolvi tentar proporcionar uma vida mais digna a eles. Além de promover uma vida mais digna, busco também conscientizar pessoas, educá-las para que essa prática seja reduzida/extinta.
Quais os casos mais comuns com que você se depara?
Todos os animais que são vítimas do tráfico, são também vítimas de maus-tratos. É muito comum encontrar os dois tipos de casos, mas, no meu instituto, o tráfico é ainda maior.
Você também atua no resgate de animais silvestres?
Não. O resgate é realizado pela Polícia Ambiental e encaminhado para o CRAS (Centro de Reabilitação de Animais Silvestres). A partir daí os animais que não têm condições de soltura (que são a maioria) podem ser encaminhados para mantenedores como o meu.
Como é a rotina de trabalho no santuário?
Os animais são alimentados com frutas e legumes pela manhã, e na parte da tarde, com castanhas, nozes e amendoins. Temos uma plantação com pomares e hortas para gerar a alimentação de todos, mas ainda não somos totalmente autossustentáveis. Por isso, semanalmente, ainda levamos frutas do Ceasa para os animais. Adquirimos uma área ao lado que era um antigo canavial e agora estamos iniciando o plantio de um sistema agroflorestal e o objetivo é nos tornar autossustentável em dois anos.
Os animais silvestres que nós recebemos são periquitos, papagaios, tucanos, araras, macacos prego, macacos bugio e lobinhos. Temos também cachorros e gatos resgatados. Temos aproximadamente 200 animais. O próximo objetivo é construir um recinto para onças. Atualmente, no CRAS de Campo Grande (MS) há cinco onças para destinação que vivem em recintos bem pequenos. Vou tentar proporcionar uma qualidade de vida melhor para algumas dessas.
Fazemos trabalhos de enriquecimento nos recintos para diminuir o estresse dos animais em cativeiro. Apesar dos recintos serem amplos, animais em cativeiro podem brigar, se automutilarem e esses enriquecimentos ambientais ajudam bastante.
O veterinário responsável pelo mantenedor, Jorge Salomão, faz visitas de 15 em 15 dias e sempre que temos uma emergência. Nos casos menos graves, o tratamento é realizado no local, em nosso centro veterinário. Nos casos graves, o Jorge transporta os animais para um hospital veterinário em Jundiaí próximo ao mantenedor.
Em caso de óbito, temos que congelar o animal para ser feito necropsia e descobrir a causa da morte. Sou responsável legal por todos os animais.
Já são 10 anos dedicados às causas ambientais. O que mudou nos últimos 10 anos na sua visão? Ficamos mais conscientes quanto à importância de preservar o meio ambiente?
Na realidade nada mudou. Infelizmente. O tráfico continua forte, as pessoas continuam comprando animais. Temos que acabar com o hábito de manter um animal silvestre em gaiola para entreter o ego das pessoas. Já o desmatamento, piorou. Continua cada vez mais forte e o plantio de soja avançando para áreas que deveriam ser protegidas. Tudo isso é muito triste. Não precisamos retirar nem mais uma árvore para produzir. Temos que preservar o pouco que temos. As pessoas têm a falsa impressão de que a mata brasileira é infinita. Se você sobrevoar o sul do Pará, por exemplo, vai ficar chocada.
Em 2020 nos deparamos com incêndios em proporções nunca vistas no Pantanal, um dos maiores biomas do planeta. Através do seu recém-criado instituto, você atuou ajudando no transporte da onça Ousado, que se tornou símbolo dessa tragédia ao ter as patas queimadas. Como foi se deparar com o cenário de fogo e como foi o trabalho do instituto na região?
Eu me senti completamente impotente. Todos os animais indefesos morrendo queimados foi uma tragédia sem tamanho. O veterinário responsável pelo mantenedor, Jorge Salomão, ficou três meses ajudando no tratamento dos animais com o apoio do instituto. O resgate e recuperação da onça Ousado foi um trabalho em conjunto das ONGs e da sociedade civil. Infelizmente houve um descaso enorme e omissão por parte do governo, que é o responsável por cuidar da nossa terra, nossa maior riqueza.
Qual a sua opinião em relação às ações do atual governo em relação ao meio ambiente? O que é urgente neste momento?
Infelizmente acho que começaram a relacionar o meio ambiente com partidos políticos. Independentemente do partido político, o governo em questão deve ser o responsável pelo cuidado da nossa fauna e flora. Isso não é uma questão de governo, é uma questão de Estado, independentemente de quem está no poder. É ele o responsável por preservar a nossa biodiversidade, que é o nosso maior patrimônio.
O mais urgente eu não sei. Mas posso fazer uma lista de ações importantíssimas:
– Temos que fiscalizar ativamente as áreas desmatadas. Temos que aumentar recursos para combater o desmatamento e não reduzir como foi feito.
– Punir as pessoas que desmatam e colocam fogo na mata. Mas só multas não resolve. Os responsáveis têm que reflorestar as áreas devastadas.
– Fiscalizar áreas de garimpo.
– Acabar com a grilagem.
– Acabar com as burocracias para regularização de terras (não conseguimos fazer créditos de carbono em várias áreas do Brasil por causa de documentação).
– Estimular o crédito de carbono.
– Mudar as leis de combate ao tráfico. Infelizmente o crime do tráfico de animais compensa no Brasil. Ninguém fica preso e nem paga as multas.
– Fazer um trabalho de educação nacional no combate ao tráfico. Temos que parar de retirar os animais da natureza e mantê-los em gaiolas dentro de casa.
– Fazer um trabalho de reintegração de animais que têm condições de soltura. Muitos desses trabalhos são realizados por ONGs e instituições privadas.
– Acabar com a cultura da caça através da educação e punição.
– Fazer campanhas nacionais para a redução de atropelamento de fauna.
Comente sobre o seu maior projeto de conservação privado no Brasil, a Fazenda Santa Sofia, no Mato Grosso do Sul. Quem está com você nessa iniciativa e quais os objetivos?
Fizemos um grupo de oito cotistas e compramos uma fazenda no Pantanal de 32 mil hectares. Ao redor dessa área temos outras fazendas parceiras focadas em conservação, totalizando uma área de 161 mil hectares que poderá chegar a 600 mil hectares. Fizemos um corredor ecológico e o objetivo é fazer um centro de reintrodução de animais, trabalhar com ecoturismo como base de desenvolvimento social da região, geração de crédito de carbono. Um dos sócios é o Onçafari, que é o responsável pela administração do projeto.
Quais episódios mais te marcaram nesses 10 anos de trabalho como conservacionista e ambientalista?
– O fogo no Pantanal foi muito impactante. Fiquei bem deprimida, chorei uma semana, mas isso não iria ajudar os animais. Acredito que temos que unir forças em prol do meio ambiente. Ajudar no transporte da onça, manter um veterinário no Pantanal, fornecer quadriciclos para levar comidas para os animais sobreviventes que estavam morrendo de fome, foram poucas ações do Instituto, mas me ajudou a ter forças novamente. Temos que vibrar com pequenas conquistas.
– Receber uma macaca-prego vítima do tráfico e maus-tratos, que viveu 40 anos acorrentada. É uma fêmea que chegou muito desnutrida e hoje estamos cuidando para ela ter um fim de vida mais digno (macaco-prego vive em média 40 anos).
– A primeira vez que eu vi na minha vida uma arara-azul foi no meu mantenedor. Recebi essa arara e fiquei horas olhando para ela, encantada com a sua beleza, mas ao mesmo tempo triste por ela estar lá. Pouco tempo depois fui para o Pantanal e vi um casal de araras-azuis voando e foi uma emoção sem tamanho.
– Ver filhotes de araras nos ninhos artificiais colocados na RPPN Santuário (Reserva Particular de Proteção Natural) também foi uma emoção enorme!
Quais os seus planos com o Instituto Raquel Machado?
Meus planos são:
– Santuário Santa Sofia (Pantanal): reintrodução de animais silvestres no Pantanal em parceria com outras ONGs em três anos; Implementação de ninhos artificiais de araras e papagaios em parceria com o Instituto Arara Azul e o Projeto Papagaio Verdadeiro;
– Reserva Fazenda Santuário (RPPN): reflorestamento nas áreas degradadas da RPPN; Construção de recinto para reintrodução de animais em parceria com o CRAS; Implementação de ninhos artificiais de araras e papagaios em parceria com o Instituto Arara Azul e o Projeto Papagaio Verdadeiro;
– Reserva do Saci (RPPN): reintrodução de animais em parceria com o CRAS;
– Incentivo à educação ambiental: fomentar o estudo da biodiversidade para crianças em escolas de SP e MS com o objetivo de reduzir o tráfico de animais e inibir a cultura do comércio de animais silvestres e da caça;
– Redução de atropelamento de fauna: projeto em Bonito em parceria com a Promotoria pública, Ampara Silvestre, Rede Pró-Unidade de Conservação e Via Fauna.
– Mantenedor em Porto Feliz- SP: criação de recinto para felino; Implementação do projeto de agrofloresta para tornar o Mantenedor autossustentável em três anos.
– Rio Azul (Pará): reintrodução de animais silvestres no Pantanal em parceria com outras ONGs em trs anos; Implementação de ninhos artificiais de araras em parceria com o Instituto Arara Azul; ecoturismo.
Que mensagem você deixa para que a sociedade em geral possa refletir?
Cada animal é um indivíduo e todas as espécies são preciosas. Animais silvestres não são propriedade, eles devem viver livres na natureza. Fazemos parte do mesmo planeta e devemos viver em harmonia.
Confira abaixo vídeos de animais silvestres resgatados e acolhidos no mantenedor do Instituto Raquel Machado:
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