Incontáveis tartarugas da Amazônia foram massacradas ao longo dos séculos, e seus ovos roubados às centenas de milhões. Hoje, esse quelônio é uma rara história de sucesso na conservação de uma espécie na Amazônia brasileira – mas que pode ser prejudicada por uma ampla gama de ameaças.
Em 2020, 120 mil filhotes de tartarugas da Amazônia (Podocnemis expansa) nadaram nas águas do rio Araguaia, marcando um aumento constante de 40 mil em 2017, 76 mil em 2018 e 96 mil em 2019.
Existem 18 espécies diferentes de quelônios, da ordem das tartarugas marinhas e jabutis, na Amazônia, desde espécies aquáticas a semiaquáticas e terrestres. Os especialistas dizem que há pelo menos cinco mais ainda sendo descritos.
O estado de Tocantins abriga 11 dessas espécies, sendo as mais populosas a tartaruga da Amazôniza, o tracajá – espécie de cágado de carapaça com pintas amarelas (Podocnemis unifilis) e os jabutis jabuti-tinga e jabuti-piranga (Chelonoidis denticulatus e C. carbonarius, respectivamente) .
Por ser a maior dessas espécies (sua carapaça pode medir mais de um metro), a tartaruga da Amazônia (que na Venezuela é chamada de arrau, na Colômbia, Peru e Equador é chamada de “charapa”. Já na Bolívia ela é chamada de “tortuga”) é a que a maioria dos moradores da região conhece. Também foi historicamente uma dos mais procuradas pelos caçadores por sua carne e gordura, que serviam como óleo de lamparina.
Historiadores contam que tartarugas da Amazônia foram massacradas em grande número nos últimos séculos. Entre 1700 e 1903, cerca de 214 milhões de seus ovos foram enviados para a Europa como alimento. A espécie é um alvo fácil de captura, pois põe seus ovos nas praias, deixando tartarugas e ovos expostos e vulneráveis.
Nos últimos anos, o projeto Quelônios da Amazônia (PQA), criado em 1979 pelo Governo Federal, teve bastante sucesso ajudando a espécie a se recuperar.
“O PQA é o programa de conservação animal mais forte do Brasil”, afirma o coordenador do projeto Wilson Rufino Dias Júnior. “Ele tem 40 anos e está ativo em vários estados do Norte. No Tocantins, o projeto está em execução no rio Araguaia próximo ao município de Caseara, dentro do Parque Estadual do Cantão, que é uma área de preservação permanente ”.
O PQA inicia seu trabalho de monitoramento dos ninhos de tartaruga em meados de setembro, quando as fêmeas começam a colocar seus ovos. A espécie desova uma vez por ano, depositando em média 100 ovos em cada ninho. Demora 60 dias de incubação antes da eclosão das tartarugas minúsculas, no final de novembro ou início de dezembro. Durante esse tempo, as equipes do PQA monitoram as praias de nidificação e marcam os ninhos com gravetos numerados. Quando os ovos eclodem, eles ajudam os filhotes de tartaruga a chegar ao rio.
Impacto de incêndios florestais
A Praia da Onça, no Parque Estadual do Cantão, era uma área onde as tartarugas da Amazônia faziam ninhos desde 2018. No ano passado, porém, elas passaram por lá, indo para outra praia, chamada Abrãaozinho.
“A hipótese é que eles mudaram de local por causa do incêndio”, diz Thiago Portelinha, engenheiro ambiental da Universidade Federal do Tocantins, uma das instituições com as quais o PQA é parceiro.
“Houve uma grande queimada perto da Praia da Onça e isso pode ter alterado o padrão reprodutivo deles. As tartarugas buscaram um lugar onde se sentissem mais seguras ”, acrescenta, lembrando que as tartarugas da Amazônia preferem desovar em praias altas com areia branca e pouca interferência humana.
A Amazônia sofreu extensas queimadas no ano passado, assim como em 2019. De acordo com o Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (IMAZON), 6.920 quilômetros quadrados de áreas verdes foram destruídas por incêndios entre janeiro e outubro de 2020, 23% a mais que no mesmo período de 2019.
“As tartarugas preferem botar os ovos à noite porque ficam mais escondidas. O incêndio nas proximidades provavelmente causou a mudança ”, diz Maria Augusta Agostini, engenheira ambiental do Centro de Estudos dos Quelônios da Amazônia (CEQUA), outra instituição parceira do PQA.
“Talvez o brilho do fogo tenha feito as fêmeas se sentirem expostas aos predadores e elas procurassem outro lugar para botar os ovos”, diz ela.
Outra mudança recente que os pesquisadores notaram entre as tartarugas do Tocantins foi a profundidade dos ninhos, que eram mais profundos no novo local – tanto que a equipe do projeto teve dificuldade em localizá-los na hora da eclosão. O motivo da mudança ainda é desconhecido, mas pesquisadores dizem que pode acontecer novamente.
“Ninhos mais profundos significam que os filhotes demoram mais para sair, deixando-os expostos a ataques de predadores por um período mais longo”, diz Agostini.
Ficar enterrado mais profundamente também pode aumentar a temperatura média nos ninhos. “As temperaturas mais altas produzem uma proporção maior de fêmeas na população”, explica Dias, do PQA. “Então, se esse comportamento continuar, com o passar dos anos a população de tartarugas do Rio Araguaia pode vir a ter mais fêmeas e afetar a variabilidade genética da região.”
Ele acrescenta que também existe o risco de inundações repentinas ao longo das margens do Araguaia. “É quando as fortes chuvas nas cabeceiras e seus afluentes fazem com que o rio suba repentinamente, inundando os ninhos. Compacta a areia e torna mais difícil para os filhotes saírem.”
Monitorando as espécies
Outra observação notável da estação de incubação de 2020 foi a ocorrência de filhotes albinos. Esta rara condição genética ocorre quando indivíduos aparentados se cruzam. Enquanto a chance de um quelônio nascer albino é de uma em 2 milhões, o comportamento reprodutivo da tartaruga da Amazônia favorece a condição, tornando o albinismo mais comum na espécie.
“Filhotes albinos já foram vistos em outros anos no Tocantins, mas a frequência precisa ser monitorada. Um aumento de albinos jovens pode significar uma diminuição da população, fazendo com que indivíduos aparentados se cruzem ”, comenta Dias.
O monitoramento constante da espécie é importante para garantir que a tartaruga da Amazônia continue desempenhando seu papel no ecossistema amazônico. Além de ser presa de espécies como onças e crocodilos, a tartaruga da Amazônia também serve para dispersar sementes na floresta por meio de suas fezes e manter a qualidade da água.
“Além disso, essa espécie tem grande importância social e econômica para as populações tradicionais, principalmente indígenas e ribeirinhas, pois podem ser sua principal fonte de proteína animal”, destaca Portelinha.
Outra ameaça à sobrevivência da tartaruga é um projeto do governamental de alargamento dos rios Araguaia e Tocantins para facilitar o embarque de soja e minérios para exportação para China e Europa. O plano envolve a dragagem de milhões de metros cúbicos de margem do rio, podendo permitir a passagem de outras espécies que poderiam competir com a tartaruga da Amazônia.
“Qualquer mudança na natureza deve ser feita com muita cautela”, observa Dias. “Existem estudos genéticos com tartarugas e jabutis na bacia do Araguaia-Tocantins comprovando que as características dos rios, que chamamos de barreiras naturais, impedem ou diminuem a migração dos animais. Isso possibilita a existência de diferentes populações de quelônios da mesma espécie. Se essas barreiras mudarem a dinâmica da população, se animais acostumados a viver em um lugar forem forçados a coabitar com animais adaptados a outro espaço, não sabemos como a natureza vai responder.”
Mas a principal ameaça, diz ele, é a mesma que dizimou a população da espécie há séculos. “É quase certo que haverá uma queda na população de quelônios por causa de mudanças em seu habitat ou por causa do consumo humano para alimentação – o maior impacto sobre as espécies de tartarugas”, finaliza Dias.
Fonte: Monagbay.com