Zooarqueóloga, Thayane Patusco desde muito nova sempre foi apaixonada por animais. De todas as espécies – sejam pets, silvestres e também os dinossauros. Formada em Ciências Biológicas pela Universidade Estácio de Sá, atualmente ela integra a equipe do Laboratório de Arqueobotânica e Paisagem (LAP) no Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Em entrevista ao portal Meus Bichos, Thayane detalha a importância da Zooarqueologia, da Paleontologia e da Arqueologia na contribuição científica. E também explica como essas disciplinas ajudam a entender a relação do homem com os animais desde a Pré-História.
Como a paixão pelos animais despertou seu interesse em Zooarqueologia?
“Desde muito nova, sempre fui apaixonada por animais, e como minha família também gostava bastante, cresci sempre em contato com diversos tipos de bichos. Com o passar dos anos, tudo me levava a estudar Medicina Veterinária. Mas, percebi que não era exatamente o que eu desejava, então parti para os famosos testes vocacionais. Todos resultaram em Ciências Biológicas e eu realmente me identifiquei.
Ao longo da graduação, decidi que iria trabalhar com aves e concluí com a apresentação do meu projeto de iniciação científica, na área da Paleontologia, na qual desenvolvi uma pesquisa sobre as aves fósseis do Brasil e a descrição de fósseis encontrados no Ceará. Pouco tempo depois ingressei na especialização, ainda pensando em trabalhar com Paleontologia. Ali eu tive meu primeiro contato com a Arqueologia e me encantei.
Como uma pessoa apaixonada por animais, sempre tive curiosidade em entender a relação entre eles e os humanos ao longo do tempo. Vi na Arqueologia, através da Zooarqueologia, uma oportunidade de contribuir cientificamente, ao mesmo tempo em que me divirto pesquisando sobre o assunto. Considerando o tempo de estudo, para elaboração do projeto no qual estou trabalhando atualmente, são quase três anos me dedicado à Zooarqueologia e esse esforço me deu base para ingressar no mestrado, onde atualmente estudo as aves encontradas em sítios arqueológicos brasileiros. Uma linha de pesquisa que pretendo seguir e não me vejo em outra.”
Qual é o objetivo da Zooarqueologia e o que essa ciência pode nos revelar sobre a relação entre os humanos e os animais?
“A Zooarqueologia é uma subdisciplina da Arqueologia, que tem como principal objetivo estudar a relação estabelecida entre humanos e animais no passado. É através de vestígios materiais encontrados em sítios arqueológicos, como por exemplo ossos, conchas ou qualquer outro indício que reflita essa interação, que são desenvolvidos os estudos zooarqueológicos. Com isso, uma ampla gama de possibilidades se abre, desde interpretações sobre padrão alimentar, uso em ritual, domesticação, até reconstituição de antigas paisagens e distribuição geográfica. E claro, com o avanço das tecnologias analíticas, novas interpretações se tornam possíveis e a área tende a se expandir.
Em uma escavação em busca de vestígios fósseis, o que é possível descobrir através da investigação de um aparentemente simples fragmento de osso encontrado?
“Antes de mais nada, é interessante ressaltar que todo estudo deve ser planejado desde o momento que precede a escavação até o acondicionamento de materiais em coleções científicas. Entender bem o material de trabalho é importante para que a amostra seja coletada da forma mais completa possível. E desse jeito, quanto mais inteiro o osso, mais informações poderão ser retiradas dele. Então, protocolos são criados, pensando em cada tipo de material (animal, vegetal, humano e etc.) e todo o processo de curadoria deles.
Com a amostra em mãos, seguimos um passo a passo no qual, inicialmente, todos os ossos encontrados são quantificados, incluindo seus fragmentos. Cada osso é identificado anatomicamente, para descobrirmos a qual parte do corpo pertence. Posteriormente, é realizada a identificação taxonômica, para constatar qual é o grupo animal (Ave, Mamífero, Réptil e etc.) daquele indivíduo, podendo ser identificado até o nível de espécie. Para as etapas de identificação, temos como base literaturas específicas, como livros de anatomia animal e manuais osteológicos, e coleções de referências, que são coleções osteológicas, utilizadas para comparar os ossos. Em alguns casos, é buscado o auxílio de especialistas em determinados grupos animais, como por muito tempo ocorreu com Aves, que é um grupo de difícil identificação para zooarqueólogos (as) no Brasil.
Tendo essas etapas concluídas, diversas abordagens, cada uma com sua especificidade, surgem para responder as mais diferentes questões levantadas. A análise dos dentes, por métodos isotópicos, pode informar sobre a alimentação do animal; estudos tafonômicos podem indicar a causa da morte; marcas de corte nos ossos podem indicar o uso do animal como alimento e, dependendo da forma dessa marca, pode evidenciar a retirada de sua pele para confecção de moradias ou roupas. Estudos de manufatura também mostram a utilização de material ósseo para fabricação de ferramentas, adornos, utensílios no geral. E, levando em conta o contexto no qual o osso estava inserido, interpretações de cunho ritualístico podem ser pensadas, como em casos em que ossos de animais são encontrados em sepultamentos.”
Como você define a relação dos humanos com os animais desde a Pré-História? Na sua visão, o quanto essa convivência moldou a história humana?
“Eu definiria como uma relação complexa, porque para cada animal e cada grupo humano essa relação foi estabelecida de forma diferenciada. Certamente, ao longo de milhares de anos que propiciaram a construção desse relacionamento, os animais exerceram papel fundamental na vida humana, integrando diversos aspectos que favoreceram a nossa sobrevivência. Com o tempo, a visão que tínhamos dos animais evoluiu de mero recurso da natureza, para algo a mais. Então, animais passaram ocupar o lugar simbólico, místico, com vasto espaço no imaginário popular. Esse extenso relacionamento, como no caso dos lobos, em que existiu uma relação simbiótica, abriu margem para a domesticação, e cada vez mais inserimos os animais em nosso cotidiano, muitas vezes compartilhando hábitos humanos e moldando-os à nossa maneira.
Além disso, tanto os animais, quanto outros elementos da natureza, serviram como estímulos para o desenvolvimento cognitivo humano. Em outras palavras, esse contato teve um grande impacto na existência de várias espécies e, nesse ponto, a Zooarqueologia tem contribuído bastante com suas investigações. Portanto, com base nos estudos já realizados, posso afirmar, sem ponderações, que não existiria vida humana como a conhecemos, sem a interação com os outros animais não-humanos.”
Qual a importância dos dados obtidos pela Zooarqueologia em outras áreas científicas ou atividades de estudo?
“Nenhuma área da ciência trabalha sozinha, os dados gerados, quando integrados apresentam um imenso potencial informativo, podendo ser bastante úteis nas tomadas de decisões sobre eventos futuros. Os dados obtidos através de estudos zooarqueológicos, são de grande importância na interpretação sobre ambientes pretéritos, conhecimento da biodiversidade e sua evolução. Portanto, fornecem informações para disciplinas que atuam também em temas recentes, como a conservação e biogeografia de espécies, conservação de ecossistemas, processos químicos e biológicos, e até geológicos, sendo possível utilizá-los como base para as mais variadas interpretações.
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O quão rico é o Brasil em sítios arqueológicos?
“O Brasil é um país riquíssimo em sítios arqueológicos, mas pouco é divulgado sobre isso. Além da grande quantidade de sítios, temos também sítios de diversos tipos: abrigos, a céu aberto, de terra preta, de geoglifos, cerrito, sambaquis, casas subterrâneas e etc. Neles encontramos os mais diferentes tipos de vestígios materiais. Aqui já foram encontrados sítios com evidências humanas que hoje estão entre os mais antigos das Américas, e vários outros com registros da fauna pré-histórica.
Frequentemente somos surpreendidos com achados de fósseis de dinossauros em escavações aqui pelo Brasil. Acredita que há muito ainda a ser descoberto?
“Como na Zooarqueologia temos como foco a relação humano-animal, nesse ponto, estamos pensando em Paleontologia, já que dinossauros não tiveram contato com humanos. As descobertas de dinossauros têm sido recorrentes nos noticiários, e eu acredito sim, que muitas outras estão por vir. Além de escavações realizadas pelo Brasil, muitos materiais estão armazenados em coleções, ‘esperando” por estudos. Então, a chance de novas espécies e novidades sobre espécies já conhecidas, serem publicadas, é bem grande.”
Conte sobre a nossa fauna pré-histórica. Que espécies você pode destacar que já dominaram por aqui?
“O território que hoje conhecemos como Brasil, teve uma grande importância na história das espécies que habitaram e habitam o planeta Terra, com valioso papel no surgimento de várias espécies de animais, como alguns dinossauros e espécies da famosa megafauna. A história de ocupação dessa porção de terra, pela fauna, começa muito antes dos dinossauros, antes mesmo da separação do supercontinente Pangeia, em que todos os continentes atuais estavam unidos, formando uma extensa e única faixa de terra. Uma série de processos de extinção e surgimento aconteceu, até que o território assumisse a forma atual. De invertebrados terrestres e marinhos, a uma infinidade de peixes, répteis, anfíbios, mamíferos e aves, o registro fóssil nos traz uma longa narrativa do que teria acontecido aqui, no passado.
Um dos mais antigos registros da fauna pré-histórica, é Cloudina lucianoi um pequeno metazoário (animal multicelular) que habitava o oceano e possuía no máximo 3 centímetros, com uma carapaça externa, e viveu no período Ediacarano, em torno de 630 e 542 milhões de anos atrás. Os peixes também aparecem em abundância nos registros, um deles, Machaeracanthus sp., viveu durante o Siluriano, há 400 milhões de anos, onde hoje encontram-se o Pará e o Piauí.
Já os vestígios de dinossauros foram encontrados em rochas com idade que variam entre 230 e 66 milhões de anos, provenientes de nossas bacias sedimentares, antigas depressões que no passado acumularam água de rios, lagos e etc., sendo bem conhecidas as bacias do Araripe, Amazonas, Bauru, Paraná, São Luíz, São Paulo e Sousa. Bons exemplos de dinossauros são o Saturnalia tupiniquim – encontrado em Santa Maria, em 1998 -, que media por volta de 1,5 a 2 metros e viveu durante o Triássico (225 milhões de anos); Santanaraptor placidus – encontrado na Chapada do Araripe, em 1991-, um raptor com cerca de 2 metros de altura, que viveu durante o Cretáceo (110 milhões de anos); e Maxakalisaurus topai – encontrado em Prata, Minas Gerais, no ano de 1995 –, um dos nossos titãs, com longo pescoço, viveu durante o Cretáceo e chegava a medir cerca de 13 metros de altura.
Ampliando o olhar, temos outro grupo de répteis bastante especiais que viveram nessa mesma época: os pterossauros. Dá para imaginar pterossauros sobrevoando o céu do Brasil? Pois bem, eles voaram e formaram um grupo bastante diverso. Foram registradas mais de três dezenas de espécies aqui, principalmente na região Nordeste, como o Aymberedactylus cearenses, que viveu no Ceará durante o Cretáceo (120 milhões de anos), e o Nyctosaurus lamegoi, que viveu na Paraíba, no final do Cretáceo (70 a 66 milhões de anos). Além disso, N. lamegoi foi o primeiro pterossauro descrito para o país, por Llewellyn Ivor Price, em 1953. Ainda sobre répteis, são conhecidas algumas espécies de crocodilomorfos (jacarés, crocodilos e afins), como por exemplo o pequeno Adamantinasuchus navae, de São Paulo, e o gigantesco Mourasuchus arendsi, do Acre. Mas, por estas bandas já passaram outros milhares de animais bem diferentes dos que conhecemos hoje, como os cinodontes (exemplo, Protuberum cabralensis), os precursores dos mamíferos, que surgiram cerca de 260 milhões de anos atrás.
Com o passar do tempo, a fauna se transforma e passam a “dominar” o espaço alguns grandes animais que restaram após o evento de extinção do Cretáceo. Paraphysornis brasiliensis certamente teve lugar reservado no topo da cadeia alimentar durante esse tempo. Ela foi uma ave do terror com cerca de 2,4 m de altura, que habitou o Brasil entre o início do Mioceno e final do Oligoceno (cerca de 23 milhões de anos atrás). E por fim, com a chegada do Pleistoceno, a megafauna passa a se destacar na paisagem. Ainda que animais menores existissem, são impressionantes os fósseis de tigre-dente-de-sabre (Smilodon populator), preguiça-gigante (Eremotherium laurilardi), gliptodonte (Glyptodon clavipes) e xenorinotério (Xenorhinotherium bahiensis), que possuem distribuição ampla no território brasileiro.”
Apesar de tanta importância na contribuição científica, a Zooarqueologia ainda não é uma ciência tão conhecida. Acha que falta divulgação? Qual sua visão sobre a Zooarqueologia no Brasil?
“A Zooarqueologia é uma área relativamente nova no Brasil. De certa forma, ela tem caminhado a passos lentos e são muitas as causas para esse percalço. Em relação a divulgação, nem se fala! Ainda que seja um campo promissor para pesquisas, é uma área que carece de profissionais, mais ainda, de especialistas. Digo isso, porque mediante a tamanha diversidade biológica refletida no registro arqueológico, fica complicado para uma única pessoa dar conta de todo o conhecimento, sempre escapa alguma informação. E não existe curso que vise formar zooarqueólogos com o mínimo de conhecimento sobre Zoologia, que se especialize em um grupo de animais. O que acaba acontecendo são parcerias entre zooarqueólogos e zoólogos para eventuais consultas. Ou seja, se a atuação é baixa, a divulgação será correspondente.
A Zooarqueologia, como eu disse, trabalha com materiais da fauna que têm evidências da interação humana, seja através de marcas ou do contexto no qual estavam inseridos. Como a história humana começa pelo final do Pleistoceno, início do Holoceno, grande parte da fauna que citei anteriormente, não faz parte do material estudado por zooarqueólogos. Dinossauros, pterossauros, cinodontes, nenhum desses é alvo do nosso interesse. Sendo estes, os animais visados por aqueles que se interessam a estudar o passado, o destino acaba sendo a Paleontologia e não a Arqueologia. E pela falta de divulgação, mesmo que a megafauna esteja dentro de nossos limites de atuação, a divulgação da Paleontologia é muito mais forte e antiga, principalmente, porque a Arqueologia durante muito tempo foi associada a caça ao tesouro, enquanto a Paleontologia trabalhava com animais pré-históricos. Quem sabe, com o avanço tecnológico e a chegada de novos profissionais, esse quadro mude? Sempre há esperança.
Porém, dentre os diversos problemas relacionados à Zooarqueologia, talvez a crise que enfrentamos com a desvalorização da ciência brasileira, em especial, a área de humanas, é de longe o pior. A desvalorização de qualquer vertente da ciência tende a afetar as demais. Como eu falei anteriormente, os dados gerados nos estudos zooarqueológicos (e aqui incluo a Arqueologia, de uma forma geral) têm potencial de contribuição com diversas áreas, incluindo áreas com calorosos debates sobre problemas atuais e futuros, então, como fazer ciência sem incentivo? Certamente isso afeta a qualidade de outras pesquisas desenvolvidas. No mais, essa é a principal barreira que estamos enfrentando atualmente, e sem dúvida é bastante preocupante.”
Que recado final você pode deixar para os futuros arqueólogos e a todos, de forma geral, que gostam desse tema?
“Eu espero que os problemas citados não afetem suas escolhas. Afinal, os desafios estão aqui para serem superados e, com certeza, serão. Estamos todos juntos, usando a ciência como resistência para tornar o Brasil um país melhor, com mais oportunidades, abrindo a mente da sociedade, para que valorizem sua história e sua pré-história, e o conhecimento, de uma forma geral. A fauna pré-histórica contém uma quantidade imensa de ‘bichos maneiros’ e muitos deles estão nas coleções, só aguardando pelo momento em que serão redescobertos, ou sua relação com os humanos seja entendida. Há um mundo de possibilidades para aqueles que gostam do tema, e mais ainda, para aqueles que gostariam de se aprofundar no assunto, seja na Zooarqueologia ou até mesmo na Paleontologia. Quem sabe, não pode ser você?”
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