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Onças pescadoras do Pantanal: conheça esses felinos e o trabalho de conservação da Estação Ecológica de Taiamã

População de onças pescadoras foi descoberta no Pantanal. Foto: Daniel Kantek/Divulgação

Onças-pintadas pescadoras e interagindo socialmente entre elas? Sim, elas existem e vivem em um refúgio praticamente intocado no coração do Pantanal, em uma das regiões mais alagadas do bioma.

Essa base alimentar inédita, constituída de peixes e jacarés, e a forma peculiar como esses felinos da região se socializam em grupo – ao contrário do comportamento solitário da espécie em outros locais -, chamou a atenção de pesquisadores. Em 2011, eles iniciaram um estudo sobre as onças-pintadas (Panthera onca) que vivem na área da Estação Ecológica de Taiamã (EET), unidade de conservação (UC) federal localizada no município de Cárceres, no Mato Grosso.

Os resultados das descobertas sobre comportamento, estado sanitário, genética, densidade, alimentação e outros aspectos foram publicados em diversos artigos científicos. O mais recente deles saiu na revista “Ecology” (Leia AQUI).

Mas não são só as onças-pintadas pescadoras que vivem sob os olhos protetores dos gestores da ETT atuantes naquela região de difícil acesso. Detalhe que, durante a cheia, que ocorre anualmente, quase 100% do terreno da unidade fica sob a água. Outras espécies de grandes mamíferos considerados vulneráveis ​​também estão presentes por lá, como a ariranha (Pteronura brasiliensis) e o cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus). 

Em entrevista ao portal Meus Bichos, o biólogo Daniel Kantek, que é coordenador das atividades em Taiamã e um dos autores do artigo sobre as onças-pintadas, conta sobre o trabalho de conservação dessa unidade federal. Ele também revela como é o dia a dia do trabalho da equipe da ETT e detalha a biodiversidade daquela região.

A Estação Ecológica de Taiamã é uma unidade federal situada em Cárceres. Foto: Daniel Kantek/Divulgação

Qual é a missão da Estação Ecológica Taimã e quais são os projetos de conservação principais?

“A Estação Ecológica Taiamã (EET) é uma área protegida situada no município de Cáceres (MT), Pantanal Norte. Em 2018 foi aprovada a designação da Estação Ecológica de Taiamã como área úmida de importância internacional, conhecido também como Sítio Ramsar. Essa convenção é o único tratado ambiental global que trata de um ecossistema particular (áreas úmidas) e os países membros abrangem todas as regiões geográficas do planeta. Estas regiões fornecem serviços ecológicos fundamentais para as espécies de fauna e flora e para o bem-estar de populações humanas. 

A Estação possui altos níveis de biodiversidade (especialmente de peixes e aves) e a ocorrência de populações de espécies vulneráveis ​​ou ameaçadas de extinção. Aproximadamente 50% das espécies de peixes e aves já descritas para o Pantanal ocorrem na Estação. 

Localizada no centro da maior área de concentração de onças-pintadas (Panthera onca) do Pantanal, a Estação desempenha um papel importante na conservação desse felino que é considerado quase ameaçado pela IUCN (sigla em inglês da União Internacional para Conservação da Natureza). Outras espécies de grandes mamíferos considerados vulneráveis ​​também estão presentes na UC, como a ariranha (Pteronura brasiliensis) e o cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus). 

As atividades de gestão estão relacionadas à proteção da UC, através dos planos de fiscalização e de prevenção e combate a incêndios florestais, os quais são revisados anualmente. Além disso, diversas pesquisas científicas são realizadas em Taiamã, onde destaco os projetos de pesquisa com onças-pintadas, peixes e aves. A UC também é o sítio de pesquisa de um programa chamado Pesquisa Ecológica de Longa Duração (PELD/CNPq), intitulada ‘Dinâmicas Ecológicas na Planície de Inundação do Alto Rio Paraguai’ (DARP). 

Diversas outras atividades são realizadas, como o diálogo com as associações de pescadores profissionais e de turismo existentes na região, ações com o conselho gestor da UC, atividades de educação ambiental junto a universidades e etc.   

A veterinária Selma Miyazaki, o biólogo Daniel Kantek e o engenheiro florestal Thadeu Deluque. Foto: Divulgação/ICMBio

Como define o trabalho da equipe de gestores da Estação?

Meu trabalho e dos meus colegas de equipe é fazer a gestão da Estação Ecológica de Taiamã, o que envolve dialogar com a sociedade, fazer e participar de atividades científicas (sempre em parceria), participar de atividades de proteção, educação ambiental, atuar na manutenção das estruturas prediais, dentro outras. Eu e os outros servidores da UC moramos em Cáceres/MT, onde existe um escritório do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Biodiversidade). Porém, vamos com frequência para a UC (viagem de quatro horas – parte em viatura e parte em embarcação), onde há uma base com internet, alojamento, refeitório e etc. A cidade mais próxima fica a 170 km via rio Paraguai.  De uma maneira geral, trabalhar em uma unidade de conservação exige que os gestores entendam o contexto regional e se comuniquem com os vários grupos da sociedade que de alguma forma se relacionam com a UC, o que torna o trabalho dinâmico e envolve muitas áreas do conhecimento. 

Como foi realizado o estudo sobre as onças pescadoras, de que forma elas foram monitoradas e que observações você pode destacar sobre o comportamento desses felinos?

Os estudos com as onças-pintadas da ETT começaram há aproximadamente uma década. Estes estudos ocorreram e ocorrem através de uma parceria entre pesquisadores do Instituto Chico Mendes, da Universidade do Estado de Mato Grosso e da Oregon State University. A publicação mais recente sobre as onças, intitulada Extensive aquatic subsidies lead to territorial breakdown and high density of an apex predator’, avaliou a dieta, a sociabilidade e a densidade das onças-pintadas na Estação Ecológica de Taiamã e entorno. O estudo, que contou com monitoramento através de armadilhas fotográficas e rádios colares durante vários anos, identificou a maior densidade (12,4 indivíduos por 100 km²) já registrada para a espécie.

Por meio da coleta de fezes foi realizada a análise da dieta, a qual indicou a predominância de peixes (46%) e répteis aquáticos (55%), sendo este o primeiro registro de uma população de onças-pintadas a se alimentar extensivamente de peixes e consumir minimamente mamíferos (11%). Até o momento, esta é a dieta descrita mais piscívora dentre todos os grandes felinos existentes. Segundo os autores do artigo, a alta concentração de recursos aquáticos disponíveis nesta unidade de conservação e entorno são os responsáveis pela alta estimativa de densidade populacional. Além disso, ao contrário do comportamento solitário da espécie relatado em outros locais, foram observadas interações sociais anteriormente não descritas entre adultos do mesmo sexo, incluindo pesca cooperativa, viagens conjuntas e brincadeiras. A alta densidade de recursos alimentares possibilita o compartilhamento de territórios, pois em locais onde a abundância de alimento é baixa as onças-pintadas não toleram sobreposição de áreas de uso. 

A associação de grande quantidade de recursos aquáticos com alta densidade populacional e aumento de interações sociais das onças em Taiamã é semelhante à ocorrência de ursos-pardos em sistemas com alta abundância de salmão. A evidência de alta tolerância social na região do estudo inclui áreas de vida altamente sobrepostas, deslocamentos conjuntos e interações sociais, as quais incluem jogos sociais e pesca cooperativa. A brincadeira social entre os animais adultos observada aqui raramente é documentada e acredita-se que ocorre quando todas as necessidades biológicas estão atendidas. 

A observação de alta densidade para um predador de topo de cadeia e de grande porte como a onça-pintada indica que a região de estudo está bem conservada e que o sistema é muito produtivo.  

Assista ao vídeo:

Imagens das câmeras de monitoramento/ICMBio

Cite alguns fatos curiosos sobre esses animais:

Em um dos vídeos de divulgação do projeto, no qual havia duas onças brincando e rolando, informamos que era um casal. Porém, após as análises de identificação dos indivíduos 
(feitas através do padrão de pintas no corpo dos animais), foi observado que eram dois machos adultos, algo que pensávamos que não ocorria. As onças-pintadas são consideradas solitárias, sendo que a sobreposição de áreas de uso e esse comportamento parecido com uma ‘brincadeira’ foi bem inesperado. 

Outra questão interessante é que várias onças não gostam muito das armadilhas fotográficas (cam trap), sendo que uma delas, em um campo de manutenção/checagem de equipamentos, ficou observando a gente ir ao local onde havia duas armadilhas fotográficas e logo que saímos (poucos minutos) ela foi na árvore onde estava instalado o equipamento, arrancou e o levou para o meio da mata. Por sorte achamos a armadilha após verificar, na outra trap, que a onça havia retirado a câmera. Muitas vezes elas não conseguem retirar o equipamento, mas mudam a armadilha de posição, fazendo com que as fotos e os vídeos fiquem em ângulos bem ruins. Esses acontecimentos, de onças serem registradas minutos após a nossa saída, acontecerem algumas vezes. 

Outro aspecto que vale o relato foram as capturas, que apesar de serem adotados muitos protocolos de segurança, sempre geram muita tensão e emoção, pois observamos o animal bem acordado e ainda sem sedação (inicialmente). O protocolo de captura é com laço e durante o momento em que os animais estão sedados são colocados os rádios colares com GPS (para obtenção dos dados de movimentação). É feita a coleta de sangue, pelo, secreções e sêmen, além da obtenção dos dados biométricos do felino. Tudo isso sempre acompanhado por veterinários especializados em captura de animais selvagens. 

Os dados do monitoramento com armadilhas fotográficas permitiram também detectar uma grande população de jaguatiricas (Leopardus pardalis), a qual não tinha sido descrita anteriormente. O que foi uma surpresa para nós, pois os estudos anteriores a este não haviam detectado essa espécie. Aparentemente a região foi colonizada recentemente pelas jaguatiricas.  

A onça-pintada é alvo de tanta cobiça e maldade (caça, tráfico de animais e etc.). Qual é a importância desse felino no bioma do Pantanal?

Este felino é considerado topo de cadeia, então, se conseguirmos conservar a espécie, conservaremos também as espécies que estão abaixo na cadeia alimentar. Além disso, atualmente as populações de onça-pintada são alvo de atividades de turismo, que vem crescendo mundialmente ano após ano. Vem gente do mundo inteiro e equipes de televisões internacionais para o Pantanal. É uma das regiões mais importantes para desenvolvimento e turismo de onças no mundo. 

Na região de Porto Jofre, relativamente próxima da EET, a venda de pacotes turísticos para a observação de onças podem chegar a U$ 6,8 milhões de dólares (mais de R$ 22 milhões) ao longo de um ano (dados do  artigo ‘The numbers of the beast: Valuation of jaguar (Panthera onca) tourism and cattle depredation in the Brazilian Pantanal’).

Como é estar cara a cara com o maior felino das Américas?

“Observar um onça-pintada na natureza é sempre muito emocionante, mesmo após dezenas de encontros com o felino. Normalmente estes encontros ocorrem quando estamos em alguma atividade de gestão (fiscalização, combate a incêndios e etc.). Importante ressaltar que sempre mantemos uma distância de segurança entre a embarcação e o felino (sempre estamos embarcados).”

Após sofrer com tantos incêndios, como está sendo a recuperação do bioma do Pantanal? A Estação Ecológica chegou a ser afetada em algum momento?

“Aproximadamente 35% da área da UC queimou em 2020, sendo que os efeitos nas áreas de florestas, que são muito importantes do ponto de vista ecológico, foram significativos, com perda de diversidade de espécies e densidade de árvores.  

Todos os servidores (somos quatro) atuaram durante meses nas atividades de combate aos incêndios de 2020, além de dezenas de brigadistas do ICMBio e IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), os quais contribuíram com muita garra e de forma decisiva. Se não fosse a atuação de toda a equipe, é bem possível que 100% da unidade fosse queimada naquele ano. 

Combater incêndio no Pantanal é muito desgastante e demorado, pois o fogo também é subterrâneo, fato que dificulta demais as práticas de contenção.”

Como é possível sensibilizar as pessoas sobre a importância da conservação ambiental?

“Muitas civilizações do passado entraram em decadência e chegaram ao colapso devido à sua incapacidade de manejar adequadamente seus recursos naturais e manter os processos ecológicos que geravam tais recursos. A manutenção da qualidade da água, fertilidade do solo, proteção contra erosão e regulação climática, entre outros, são serviços cruciais que os sistemas ecológicos nos entregam. Cuidar bem ou mal destes processos ecológicos tem sido um dos fatores determinantes da longevidade de civilizações.  

E pensando além dos argumentos acima, para que sejamos bem-sucedidos em conservar animais, plantas e seus ambientes, é necessário que o façamos por eles mesmos, pelo direito que eles têm à vida.”

Confira a galeria de fotos:


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Agradecimentos:

Estação Ecológica Taiamã

ICMBio