Pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo) observaram o comportamento de formigas de correição da espécie Eciton hamatum, em suas longas trilhas no solo da floresta amazônica, e perceberam que esses insetos se organizam de maneira mais complexa do que se pensava até então. Simulações computacionais mostraram que, o que se acreditava ser um problema de trânsito durante a recolocação dos seus ninhos temporários, é, na verdade, uma estratégia para conseguir mais alimento. As formigas armazenam presas na trilha para fazer melhores investidas em ataques em outros ninhos.
O artigo científico que descreve o estudo foi publicado em 9 de fevereiro, no periódico Biology Letters da editora The Royal Society, intitulado Temporary prey storage along swarm columns of army ants: an adaptive strategy for successful raiding?
Formigas de correição: cegas, nômades e vorazes
Formigas de correição é como é chamado um conjunto de cerca de 200 espécies de formigas que compartilham de uma característica em comum: vivem em grandes expedições. Esses insetos não constroem colônias físicas como formigueiros, apenas ninhos temporários (bivaques) — seu estilo de vida é nômade; percorrendo longas trilhas, se alimentando de ovos, larvas, e atacando outros insetos, principalmente insetos sociais, que cruzam o caminho.
“A formação dessas colunas em seu comportamento coletivo sempre nos fascinou”, afirma ao Jornal da USP o professor Nicolas Châline, do Instituto de Psicologia (IP) da USP e orientador da pesquisa.
Ainda que essas formigas sejam conhecidas como uma das maiores predadoras do Brasil, os insetos maiores (como gafanhotos e grilos) frequentemente escapam dos seus ataques. Esses se tornam alvo de aves, que acompanham as trilhas na espera das investidas sem sucesso para se alimentarem.
O psicólogo e doutorando no Laboratório de Etologia, Ecologia e Evolução dos Insetos Sociais do IP, Hilário Póvoas de Lima, explica que as formigas de correição da espécie Eciton hamatum são cegas e, pelo olfato, usam feromônio como dicas químicas deixadas pelas companheiras de ninho para se deslocar pela floresta diariamente, mudando o local de seu bivaque constantemente.
Quando conquistam o alimento, as operárias o depositam em estruturas ao longo dos percursos que podem atingir 200 metros, de modo a protegê-lo de fatores climáticos e de outros insetos. Essa forma de armazenamento durante a expedição é chamada de cache e também ocorre em outras espécies, como os esquilos, que guardam nozes em troncos de árvores.
Até então, acreditava-se que essas pilhas ou esconderijos de alimentos geralmente ocorriam apenas durante a mudança do local de bivaque, de modo mecânico e automático e por conta de alguns “erros de logística”.
Assim como em avenidas, as trilhas químicas têm um limite da largura que controla a quantidade de operárias que podem trafegar através do rastro químico. Lima conta que as colônias de E. hamatum são muito numerosas e, quando se mudam, uma grande quantidade de operárias se desloca ao mesmo tempo, o que gera alguns “engarrafamentos”. Quando há engarrafamentos na pista, as operárias que carregam alimentos são impedidas de seguir em frente e soltam sua carga sobre o solo, estimulando outras operárias a fazer o mesmo: assim formam-se mais e mais caches.
De acordo com o professor Châline, o comportamento de formigas de correição é usado de referência para modelos matemáticos e de algoritmos, por serem considerados simples, autônomos e mecânicos. Eles são formas de bioinspiração para tecnologias.
Formação de caches: solução engenhosa para um problema logístico
Nas pesquisas de campo, os cientistas notaram que a formação de caches não acontecia exatamente como descreve a literatura científica. Eles observaram que essas estruturas não ocorrem somente nas mudanças de bivaque, mas sim durante o forrageio: na busca de alimento.
“Nos caches que registramos em campo, pudemos ver algumas operárias depositando presas e outras coletando essas presas. Percebemos que as operárias que carregam apenas uma presa são mais propensas a depositá-la no cache e que as operárias que já estão com sua carga máxima geralmente seguem direto para o seu ninho”, afirma Lima ao Jornal da USP.
O estudo buscou entender o papel dessa estrutura no forrageio da espécie. Os pesquisadores acreditavam que esse comportamento poderia ser mais complexo e criativo do que se pensava. Uma hipótese era de que as operárias que carregam apenas uma presa poderiam depositá-la e retornar para o ninho atacado coletando mais alimento, enquanto que as que estão carregadas com duas ou mais presas poderiam seguir direto para o bivaque — modo de economizar viagens e maximizar a coleta de presas.
Por uma simulação computacional, foi testado se o cache poderia melhorar a eficiência da coleta de presas e avaliando em quais contextos isso poderia ocorrer. Foram simulados ataques de formigas sem e com a formação dos caches nas trilhas de forrageio, de modo comparativo.
“Percebemos, com as simulações, que o cache de fato maximiza a coleta de alimentos, principalmente quando existem poucas operárias disponíveis”, afirma o autor. Diferente de um processo automatizado, o estudo mostrou que os caches são formas adaptadas que as formigas de correição desenvolveram para coletar o máximo de alimento em um só ataque. Assim que encontram um ninho para invadir, as poucas operárias aptas iniciam uma corrida para roubar ovos e larvas, antes que as presas fujam e se defendam.
“Nessa confusão, o cache é uma estrutura em que a operária de formiga de correição pode depositar seguramente sua presa e rapidamente voltar para coletar mais presas, melhorando a coleta mesmo quando existem poucas operárias para realizar essa tarefa”, completa.
Formando esses depósitos na trilha, parte das formigas pode depositar novas presas em segurança, enquanto outras retiram alimentos e os levam para o ninho, para alimentar seus filhotes. Os resultados mostraram um papel inédito nos caches e sobre o valor adaptativo para as formigas de correição E. hamatum.
“Mostraram que formigas de correição encontraram uma solução engenhosa para um problema logístico de causar pesadelos para qualquer um que precise coletar e transportar rapidamente uma grande quantidade de recursos efêmeros, usando vias limitadas e com poucos indivíduos disponíveis para esse trabalho”, afirma.
Por Guilherme Gama/Jornal da USP